Amor amore compensatur*

*Ditado em latim: amor com amor se paga
O texto abaixo faz parte da minha defesa de dissertação apresentada no dia 20/02/2017, pelo Mestrado em Literatura ofertado pela Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes).


Infelizmente, o pieguismo faz parte dos signos que eu emano. Indo contra Rodrigo S. M., de A hora da estrela, eu choro piegas mesmo sendo homem. Tomo aqui a expressão “nos braços de” não como aperto, sufoco ou aprisionamento. Tomo como um signo corporal de união e conexão. Estar nos braços de alguém me permite também ser amparado e protegido, mas também amparar e proteger. Nesses dois anos, estive nos braços de Clarice, Ulisses e Lóri. 

Como sugestão, fui indicado a recorrer às cartas para saber o destino de Lóri e Ulisses. Mas, ao tirar a sorte de Lóri, acabei tirando minha própria sorte. Talvez o mesmo se deu no processo de escrita: ao escrever sobre o casal clariceana, acabei escrevendo sobre mim, sobre meu olhar que começou tímido, turvo e medroso, e terminou com um vislumbre de algo maior. No corte de cartas, tiro DIABO, SOL E O MUNDO. Ao toque das minhas mãos, que ora escrevia, ora tateava o mundo, leio que Lóri estava rodeado de seiva ruim, porém, algo de glorioso a esperava em alguma porta. As cartas ou as chaves para uma vida significativa sempre estiveram ao alcance das mãos. 

Antes te tudo, devo mencionar o básico: o problema, as dificuldades e os resultados.  

Meu problema sempre foi averiguar à relação estabelecida entre Loreley e Ulisses, saber o que estava imbricado nela: poder? Pura sedução? Machismo? Homem contra mulher? Foram longos encontros para poder abrir meu campo de visão. Infelizmente, os discursos amorosos encontram-se impregnados das relações de poder. Mas em Clarice sempre notei algo além: tinha algo enterrado, representativo, nos nomes, nas ações, nas reverberações do mito. Reduzir a obra em algo machista é falar pouco. 

As dificuldades se manifestaram na minha abordagem: o que fazer? Como escrever? O que tentar? Muitas vozes, muitos palpites. Tudo são perguntas, que tal respondê-las como tal? Quem é Clarice? O que é amor? Quem são eles? 

Sobre resultados, falarei aos poucos. Mas posso dizer que redescobri que AMOR É EXERCÍCIO DE TROCA. “Amar os outros é a única salvação individual que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca” Lispector. 

Poderíamos decifrar, ou melhor, transcrever as personagens de Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres em uma operação matemática. Para corroborar esse pensamento, poderia usar Heitor Martins, crítico e jornalista, que disse: "Duas atitudes confrontadas, uma mais avançada que a outra e finalmente atingindo um ponto comum".  Falando desse modo, lembra-me os gráficos matemáticos aprendidos na escola onde linhas se tangenciavam em determinado ponto, sendo este o auge do gráfico. Mas falar assim deles, Lóri e Ulisses, seria reduzi-los demais a um mundo totalmente decifrável e numérico: frieza. Como se tudo fosse explicado com base em leis e ordens, em um universo que sabemos ser caótico mesmo havendo leis e ordens que tentam dar contorno e divisão a tudo. “Existir não é lógico”, Clarice Lispector. 

Não consegui esquecer algumas palavras da minha banca de qualificação. “Clarice passa pelo finito Alexandre... isso não é nenhum problema... o finito é o cotidiano, o dia-a-dia, as coisas, os fatos... mas ela consegue justamente constituir uma abertura para o ilimitado da vida, desse mesmo cotidiano, escapando-se pela criação dessa finitude, desse empirismo vulgar regido pelo hábito”. Por passar pelo finito, ela fala daquilo que é nosso: as coisas, as pessoas, os sentimentos.  

Ainda sobre caos e ordem, minha área de trabalho no computador nunca esteve tão bagunçada e minha mente nunca esteve tão exausta. Um deve ser reflexo do outro. Mas outras coisas também parecem estar 'bagunçadas'. Sou jornalista e as notícias, nos últimos tempos, têm me chocado bastante. Nas eleições presidenciais de 2014, o Brasil experimentou um fenômeno chamado polarização política, onde o ódio foi colocado como expressão de ideia e de discurso. Tudo me choca, porque se têm nutrido “espaços higiênicos” onde ser e pensar diferente é um perigo. Aliás, ser o outro é um perigo (homofobia, transfobia, xenofobia, racismo, etc). A experiência de outridade fica em ameaça. Os olhos do outro são vendados e não podemos olhar no fundo deles. “Olhe dentro de seus olhos e você verá o que eles sabem” (Desperate Housewives). 

Ser diferente ou tentar fazer algo diferente na academia é algo perigoso, arriscado. 
Em “Amor líquido”, o eterno sociólogo Zygmunt Bauman fala sobre o colapso das relações amorosas, o longo adeus do amor. As relações estabelecidas entre todos nós parecem estar arruinadas.  Sem a visão ‘amorosa’ o outro é sempre um Inimigo, um muro intransponível. Cria-se a sociedade murada, sem pontes, sem conexão. Não queremos aprender ou conhecer o outro. Lóri não conhecia Ulisses, mas desejou aprender amá-lo. Na verdade, amá-lo foi uma conseqüência após ter aprendido a amar o mundo e amado a si mesma. Conhecer o outro foi uma ponte para que Lóri conhece-se a si mesma. Lóri, assim como as personagens femininas clariceanas, sustentam os verbos de ação. Amar para a sereia que espera é agir. Precisa-se falar em amor, talvez pelos refugiados, pelos gays, lésbicas, transexuais, negros, por todos nós. Mas amor sem ação não vale para nada. E Lóri, instintivamente, sabia disso. 

Loreley não era imigrante, lésbica, negra. Mas era mulher. O status quo da década de 1960 supunha uma mulher passiva, que esperasse o homem e sua corte. Mas a mulher Lóri correu atrás de sua própria sensibilidade, como forma de encontrar sua expressão, e afirmar o direito à função do seu corpo. A função do seu amor. A função do seu prazer. Domou as rédeas de seu próprio destino, porque ela poderia, simplesmente, ignorar aquele “chamado” e esperar outro homem que fizesse a corte tradicional. 

E qual seria o destino maior de uma mulher? Visões machistas diriam que é servir ao gozo masculino e a ele ficar atrelado. Com olhos abertos para a vida, a mulher clariceana quer experimentar o mais profundo da vida e do seu ser feminino. Para se entregar ao verdadeiro amor e prazer, a protagonista de Uma Aprendizagem ou O livro dos prazeres, Loreley precisou se entregar a ela mesma e perceber que o verdadeiro prazer é uma troca, e não um sacrifício. Do outro, eu quero seus signos e aprender os seus significados mesmo eles sendo flutuantes. Do outro, quero aprender. Como correspondência de troca, como aprendizado pleno. 

Mesmo que na vida real o amor não vença tudo, acho melhor acreditar nele como solução do que nas expressões de ódio. 

Sociedade sem amor é barbárie.
Academia sem amor é pilhas de papeis entulhados.
Sem amor, o outro é sempre inimigo. 
Expressar amor é discurso político.
Falar sobre amor sempre foi uma obrigação, a mais prazerosa das burocracias da vida. 

Sem amor, Ulisses era apenas mais um professor universitário entre tantos outros. Mas Lóri decidiu atravessar as águas do mundo para chegar até aquele homem que se parecia distante. Parecia distante, porque Loreley, professora de crianças, estava distante dela mesma: “sou pedra no meu próprio caminho”. 

Por meio da aprendizagem amorosa, Loreley conseguiu comer a fruta do mundo, assim como fez Psiquê. O escuro não era suficiente para a princesa grega manifestar seu amor. Foi preciso luz, atingir a luminescência. As tarefas impostas serviram para que ela alcançasse a glória: pessoal e do seu amor. 

No encontro a dois, Lóri está plena, desabrochada, capaz de comer a fruta do mundo. Ao realizar as provas místicas de Afrodite para no final ter acesso à morada dos deuses e à imortalidade dos olimpianos, Psiquê consegue ter igualdade perante Eros, seu amado deus. Acontece fenômeno semelhante à Lóri quando finalmente ela se entrega nos braços de Ulisses e se transmuta de crisálida para leve borboleta. 


— Nós dois sabemos que estamos à soleira de uma porta aberta a uma vida nova. É a porta, Lóri. E sabemos que só a morte de um de nós há de nos separar. Não, Lóri, não vai ser uma vida fácil. Mas é uma vida nova. (Tudo me parece um sonho. Mas não é, disse ele, a realidade é que é inacreditável.). 

Lóri abre as portas da casa de Ulisses. Psiquê abre as portas do Olimpo. Ambas atingem a glória após passarem por seus testes: deixem a figura rastejante da lagarta e atingem a luz por meio da metamorfose em ser alado. As alunas descobrem que também sempre foram mestres, ao passo que aprender, assim como amar, é via de mão dupla. 

Gostaria de usar algumas palavras alheias para finalizar. Antes disso, acho importante relembrar que nas próprias palavras de Lóri, além de ser pedra, ela também não conseguia se dar ao mundo, as pessoas. Mas aprendeu a ser generosa com o outro e com ela mesma, ser leve, ser água que nutre. Dar é uma oração. 

A mais importante esfera de dar, entretanto, não é a das coisas materiais, mas está no reino especificamente humano. Que dá uma pessoa a outra? Dá de si mesma, do que tem de mais precioso, dá de sua vida. Isto não quer necessariamente dizer que sacrifique sua vida por outrem, mas que lhe dê aquilo que em si tem de vivo; dê-lhe de sua alegria, de seu interesse, de sua compreensão, de seu conhecimento, de seu humor, de sua tristeza – de todas as expressões e manifestações daquilo que vive em si. Dando assim de sua vida, enriquece a outra pessoa, valoriza-lhe o sentimento da vitalidade. Não dá a fim de receber; dar é, em si mesmo, requintada alegria. Mas, ao dar, não pode deixar de levar alguma coisa à vida da outra pessoa, e isso que é levado a vida reflete-se de volta no doador; ao dar verdadeiramente, não pode deixar de receber o que lhe é dado de retorno.  Dar implica fazer de outra pessoa também um doador e ambos compartilham da alegria de haver trazido algo à vida. (FROMM, 1960, p. 47).

Obrigado. 

Comentários

  1. Amei! verdadeiramente, como disse o apóstolo Paulo, o amor é o vínculo da perfeição. Excelente escrita. Texto coeso e muito significativo. Parabéns!

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