A novela que cura

Quem quer ser Bela Aldama?

Enquanto espirro e tusso quase sem parar, assisto uma telenovela mexicana. Na mesa, alguns antibióticos e remédios para um pesado resfriado. A vida passa lenta e calma do lado de fora da casa. O mundo não para por ninguém. A televisão exibe uma cena muito corriqueira na teledramaturgia mexicana: uma enfermeira com cara de malvada, usando uma peruca curta de cabelos escuros, raptando crianças para realizar um plano de vingança. O que me chama atenção é seu carro com estofado na cor rubra (ou é vinho?) e ainda de veludo. 

Enquanto a enfermeira falsa, muito falsa, aliás, foge para não ser pega, a mãe dos meninos surta no hospital. Seu marido a sacode e pede paciência. O irmão dela, da mãe dos meninos, entra em outra cena gritando, louco, dizendo que vai procurar as crianças por todas as ruas da cidade. Claro, ele parte e encontra uma pista. Atormentada, a mãe das crianças chama pelos seus nomes compostos e reza com veemência para a Nossa Senhora de Guadalupe. (Em uma outra cena, um palhaço diverte as crianças numa sala enfeitada por quadros de armas e uma mulher louca conversa com ela mesma num sanatório. Ela está com suas luzes intocáveis e o cabelo parece muito hidratado).

Assisto novelas mexicanas desde criança. Vi gêmeas que não se conheciam disputarem o amor de um cara extremamente forte, mesmo sem ter tempo de ir a uma academia (sim, isso foi um pequeno sinal de inveja). Vi mais gêmeas disputarem amor e dinheiro; irmãos com índoles opostas, vovozinhas de cabelo vermelho fazendo tricô sabe-se lá pra quem, mulheres pobres virarem damas da alta sociedade (Quem quer ser Bela Aldama?). Parece que quanto mais falso e dramático melhor: homens nervosos e másculos, retirados de contos eróticos (“pegou-me pelos braços fortes, másculos e morenos, puxando-me para mais perto”), peruas elegantes que nunca perdem a postura e a elegância, mesmo presas ou internadas em sanatórios. Não podem faltar as crianças que são sempre filhas de outra pessoa (todo mundo sabe a paternidade, mas ninguém diz). 

As mortes surreais também fazem parte dos romances. Empurrões misteriosos, caídas de cavalo, porque a cela estava frouxa, afogamentos estranhos, tiros no escuro e o meu favorito: envenenamento por alguma substância tão oculta que nem o melhor dos cientistas iria descobrir que se tratava de um pó seco de uma erva dada por uma cozinheira amiga da vilã, que na verdade, é a mãe dela após um caso passageiro com o patrão. 

A sensualidade também é muito latente. Corpos bonitos, suados e sempre bem arrumados. Golas de camisas abertas até o abdômen peludo e forte, ou saias transparentes com sutiãs escandalosos e a barriga de fora. As mocinhas são sempre muito boas. As vilãs são sempre muito ruins. Os personagens masculinos são apenas joguetes nas mãos delas. 

Enquanto escrevo e vejo a novela, até esqueço de espirrar. Lembra-se da mulher louca presa no manicômio? Ela tem um trato com a enfermeira falsa que raptou as crianças. Além do seu cabelo, a mulher louca mantem um bronzeado impecável. Que inveja. 

***Essa crônica foi escrita há muito tempo, portanto, não estou mais doente. 

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